“Dêem-me uma Secretária e um Contabilista e eu
conquistarei o Mundo...”.
A frase é atribuída a Henry Ford, fundador da Ford
Motor Company, no primeiro quartel do século passado.
Se a referência à Secretária é espontaneamente
aceite, não só pelo melindre e complexidade do elenco de tarefas compreendidas
mas, principalmente, pelo espírito de missão com que são desenvolvidas pelos
bons profissionais, já a referência ao Contabilista deixa sempre muita gente
nas empresas surpreendida. O estado actual das coisas em matéria de
Contabilidade não estimula a compreensão da sua utilidade para a gestão das
organizações, não permite clarificar que a Contabilidade não é um fim em si
mesmo mas um instrumento na prossecução dos objectivos globais das
organizações.
Perguntar-se-á, então, como se atingiu este estado
de coisas.
Desde que, em 1494, o monge franciscano Luca
Paciolli deu à estampa o primeiro tratado sobre Contabilidade até à
actualidade, o conhecimento contabilístico evoluiu significativamente; Numa
primeira fase, visava constituir um auxiliar, por um lado, de memória, mediante
o registo histórico das transacções e, por outro, de cálculo, no processo de
apuramento dos ganhos e perdas emergentes para os agentes económicos e encontrava-se
eminentemente orientada para a actividade do comércio.
A Revolução Industrial vem questionar esta monotonia
vocacional, em resposta ao que a doutrina contabilística se expande
conceptualmente, robustecendo-se com uma nova valência: a capacidade de relevar
os fenómenos internos de transformação fabril.
O progresso das tecnologias, a evolução na curva de
experiência do seu domínio, a percepção do fenómeno das economias de escala e a
sensação de capacidade de indução de comportamentos e hábitos de consumo,
convergentemente, vêm a determinar que as fábricas rudimentares reduzidas à
monoprodução dêem lugar a complexas unidades industriais multi-produto; A
questão tornou-se rapidamente o Adamastor dos modelos contabilisticos de matriz
industrial: como tratar os custos comuns?
A Contabilidade, com celeridade, procurou responder
a esta nova questão desenvolvendo métodos e técnicas com vista à análise dos
processos de formação de valor nos negócios; E, quando, já no último terço do
século XX, no mundo ocidental, se assiste ao advento da era do Controlo na
Gestão, fácil se tornou adaptar a doutrina contabilística, desenvolvida para a
valorização de produtos/serviços e de departamentos/secções, no sentido de a
operacionalizar numa lógica de avaliação de “performance” para optimização da
produtividade e reforço da competitividade.
Ora, o percurso evolutivo que se tentou descrever
revela uma focalização crescentemente centrada no interior das instituições com
o objectivo imediato de produção de conhecimento para a sustentação das
decisões a tomar pelos seus responsáveis.
A questão não se coloca, portanto, no plano da
doutrina contabilistica.
O problema nasce na “praxis” contabilistica e no que
ela foi influenciada pela sucessão de acontecimentos em sentido contrário que
caracterizaram o século XX nas
matérias da Contabilidade e que são conhecidos como “Normalização
Contabilistica”.
A normalização contabilistica enquanto conjunto de
princípios, normas e procedimentos de utilização imperativa por parte de
agentes económicos no processamento da informação contabilistica, com vista à
sua harmonização sob perspectivas sectorial, nacional e, até mesmo,
internacional, vem claramente prejudicar o recurso à informação contabilistica
para finalidades internas; Neste sentido, retira potencialidades informativas à
Contabilidade de cada agente económico, pela uniformização de procedimentos de
tratamento dos dados não atendendo às especificidades inerentes à dimensão e
sector de actividade de inserção das empresas.
Já em 1960 Gonçalves da Silva o perspectivava,
quando, na abertura da 2ª edição do seu “Contabilidade Industrial”, citava W.J.
Vatter: “It is impossible to set up any kind of an accounting system, even in
theoretical terms, that would meet the needs of any large number of companies;
There are always special reasons for doing things in particular ways, peculiar
problems to be met and unusual circumstances to be faced”.
Este “maoísmo contabilístico” – curiosamente
bastante bem aceite pelos seus principais protagonistas pois é sempre mais
fácil cumprir ordens do que criar convenções ... – tem, ainda, uma outra
desvantagem importante: é que, a lógica normativa que passou a imperar faz
parecer constituir informação exacta algo que o não é... Sendo certo que o
conhecimento em Contabilidade assume natureza paramétrica e não determinista,
na historieta que se conta, de perguntar a um Advogado, a um Médico e a um
Contabilista quantos são dois mais dois, ao que este último responderia ‘Quanto
quer que seja?’ só vê piada quem não percebe nada de Contabilidade...
Porém, o progressivo reforço da
componente normativa e consequente esvaziamento doutrinário e conceptual da
prática contabilistica actual tende a ignorá-lo e, por isso, poderá ter igualmente
contribuido para explicar, em alguma medida os recentes escândalos
contabilísticos conhecidos; Sem dramatismos, contudo, já que subscrevo
integralmente o optimismo do empresário norte-americano John Malone que, sobre
o assunto, sentenciou “… faz-me lembrar a Primavera, quando a neve derrete e
vemos a ‘caca’ de cão que lá esteve o Inverno todo...”.
De facto, o paradigma de raciocínio do T.O.C.
assemelha-se, hoje, mais ao de um Jurista que ao de um Gestor.
Como corolário, não hesito em arriscar que,
actualmente, nos falta em bons
contabilistas o que nos sobra em B.O.C.: Burocratas Oficiais de Contas!!...
Impõe-se, portanto, com urgência recontextualizar a
Contabilidade na gestão das organizações. Se é certo que, no mínimo, o
bom-senso, aconselha a ponderação, pela Contabilidade, dos imperativos de ordem
fiscal vigentes, não é menos certo que o seu papel de geração de informação
para suporte de tomada de decisão não é compaginável com a sua subordinação à
lógica normativa da Fiscalidade.
Solução? Várias contabilidades... Independentes e
naturalmente não-alinhadas... Uma, a Contabilidade financeira-fiscal, a
Contabilidade tradicional com uma vocação assumida de reporte externo e
normalizada; Outra, a Contabilidade de Gestão, a Contabilidade na sua
orientação mais pura de produção de conhecimento para a gestão de negócios,
para o controlo, para a avaliação da “performance”, uma contabilidade não
intervencionada vinculada apenas ao método “CARE”: Competência, Auto-Regulação e Ética...
Sonho? Utopia? Talvez não...
... É que, há um par de anos, fui confrontado com um
pedido de equivalência à disciplina que lecciono, formulado por um aluno alemão
que pretendia continuar os seus estudos no nosso país; Para o efeito,
disponibilizaram-me o conteúdo programático da cadeira congénere na
universidade alemã; Sob a epígrafe “Contabilidade Financeira e as Demonstrações
Financeiras”, a terceira parte do programa abria logo o primeiro capítulo com o
seguinte tema: “A Contabilidade Financeira como sub-área da Contabilidade de
Gestão”.
Sorri e pensei, de consciência tranquila: “...
Também eu tenho um sonho!!...”
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