quinta-feira, 25 de abril de 2013

A Primavera na Contabilidade


“Dêem-me uma Secretária e um Contabilista e eu conquistarei o Mundo...”.
A frase é atribuída a Henry Ford, fundador da Ford Motor Company, no primeiro quartel do século passado.

Se a referência à Secretária é espontaneamente aceite, não só pelo melindre e complexidade do elenco de tarefas compreendidas mas, principalmente, pelo espírito de missão com que são desenvolvidas pelos bons profissionais, já a referência ao Contabilista deixa sempre muita gente nas empresas surpreendida. O estado actual das coisas em matéria de Contabilidade não estimula a compreensão da sua utilidade para a gestão das organizações, não permite clarificar que a Contabilidade não é um fim em si mesmo mas um instrumento na prossecução dos objectivos globais das organizações.

Perguntar-se-á, então, como se atingiu este estado de coisas.

Desde que, em 1494, o monge franciscano Luca Paciolli deu à estampa o primeiro tratado sobre Contabilidade até à actualidade, o conhecimento contabilístico evoluiu significativamente; Numa primeira fase, visava constituir um auxiliar, por um lado, de memória, mediante o registo histórico das transacções e, por outro, de cálculo, no processo de apuramento dos ganhos e perdas emergentes para os agentes económicos e encontrava-se eminentemente orientada para a actividade do comércio.

A Revolução Industrial vem questionar esta monotonia vocacional, em resposta ao que a doutrina contabilística se expande conceptualmente, robustecendo-se com uma nova valência: a capacidade de relevar os fenómenos internos de transformação fabril.

O progresso das tecnologias, a evolução na curva de experiência do seu domínio, a percepção do fenómeno das economias de escala e a sensação de capacidade de indução de comportamentos e hábitos de consumo, convergentemente, vêm a determinar que as fábricas rudimentares reduzidas à monoprodução dêem lugar a complexas unidades industriais multi-produto; A questão tornou-se rapidamente o Adamastor dos modelos contabilisticos de matriz industrial: como tratar os custos comuns?

A Contabilidade, com celeridade, procurou responder a esta nova questão desenvolvendo métodos e técnicas com vista à análise dos processos de formação de valor nos negócios; E, quando, já no último terço do século XX, no mundo ocidental, se assiste ao advento da era do Controlo na Gestão, fácil se tornou adaptar a doutrina contabilística, desenvolvida para a valorização de produtos/serviços e de departamentos/secções, no sentido de a operacionalizar numa lógica de avaliação de “performance” para optimização da produtividade e reforço da competitividade.

Ora, o percurso evolutivo que se tentou descrever revela uma focalização crescentemente centrada no interior das instituições com o objectivo imediato de produção de conhecimento para a sustentação das decisões a tomar pelos seus responsáveis.

A questão não se coloca, portanto, no plano da doutrina contabilistica.

O problema nasce na “praxis” contabilistica e no que ela foi influenciada pela sucessão de acontecimentos em sentido contrário que caracterizaram o século XX  nas matérias da Contabilidade e que são conhecidos como “Normalização Contabilistica”.

A normalização contabilistica enquanto conjunto de princípios, normas e procedimentos de utilização imperativa por parte de agentes económicos no processamento da informação contabilistica, com vista à sua harmonização sob perspectivas sectorial, nacional e, até mesmo, internacional, vem claramente prejudicar o recurso à informação contabilistica para finalidades internas; Neste sentido, retira potencialidades informativas à Contabilidade de cada agente económico, pela uniformização de procedimentos de tratamento dos dados não atendendo às especificidades inerentes à dimensão e sector de actividade de inserção das empresas.

Já em 1960 Gonçalves da Silva o perspectivava, quando, na abertura da 2ª edição do seu “Contabilidade Industrial”, citava W.J. Vatter: “It is impossible to set up any kind of an accounting system, even in theoretical terms, that would meet the needs of any large number of companies; There are always special reasons for doing things in particular ways, peculiar problems to be met and unusual circumstances to be faced”.

Este “maoísmo contabilístico” – curiosamente bastante bem aceite pelos seus principais protagonistas pois é sempre mais fácil cumprir ordens do que criar convenções ... – tem, ainda, uma outra desvantagem importante: é que, a lógica normativa que passou a imperar faz parecer constituir informação exacta algo que o não é... Sendo certo que o conhecimento em Contabilidade assume natureza paramétrica e não determinista, na historieta que se conta, de perguntar a um Advogado, a um Médico e a um Contabilista quantos são dois mais dois, ao que este último responderia ‘Quanto quer que seja?’ só vê piada quem não percebe nada de Contabilidade...

Porém, o progressivo reforço da componente normativa e consequente esvaziamento doutrinário e conceptual da prática contabilistica actual tende a ignorá-lo e, por isso, poderá ter igualmente contribuido para explicar, em alguma medida os recentes escândalos contabilísticos conhecidos; Sem dramatismos, contudo, já que subscrevo integralmente o optimismo do empresário norte-americano John Malone que, sobre o assunto, sentenciou “… faz-me lembrar a Primavera, quando a neve derrete e vemos a ‘caca’ de cão que lá esteve o Inverno todo...”.

De facto, o paradigma de raciocínio do T.O.C. assemelha-se, hoje, mais ao de um Jurista que ao de um Gestor.

Como corolário, não hesito em arriscar que, actualmente,  nos falta em bons contabilistas o que nos sobra em B.O.C.: Burocratas Oficiais de Contas!!...
Impõe-se, portanto, com urgência recontextualizar a Contabilidade na gestão das organizações. Se é certo que, no mínimo, o bom-senso, aconselha a ponderação, pela Contabilidade, dos imperativos de ordem fiscal vigentes, não é menos certo que o seu papel de geração de informação para suporte de tomada de decisão não é compaginável com a sua subordinação à lógica normativa da Fiscalidade.
Solução? Várias contabilidades... Independentes e naturalmente não-alinhadas... Uma, a Contabilidade financeira-fiscal, a Contabilidade tradicional com uma vocação assumida de reporte externo e normalizada; Outra, a Contabilidade de Gestão, a Contabilidade na sua orientação mais pura de produção de conhecimento para a gestão de negócios, para o controlo, para a avaliação da “performance”, uma contabilidade não intervencionada vinculada apenas ao método “CARE”: Competência, Auto-Regulação e Ética...

Sonho? Utopia? Talvez não...
... É que, há um par de anos, fui confrontado com um pedido de equivalência à disciplina que lecciono, formulado por um aluno alemão que pretendia continuar os seus estudos no nosso país; Para o efeito, disponibilizaram-me o conteúdo programático da cadeira congénere na universidade alemã; Sob a epígrafe “Contabilidade Financeira e as Demonstrações Financeiras”, a terceira parte do programa abria logo o primeiro capítulo com o seguinte tema: “A Contabilidade Financeira como sub-área da Contabilidade de Gestão”.
Sorri e pensei, de consciência tranquila: “... Também eu tenho um sonho!!...”

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